Hoje
comemora-se o DIA MUNDIAL DA 3ª IDADE
Por isso
escolhi um texto de Rosa Lobato Faria que guardo há anos, por gostar tanto e,
de dizer tudo aquilo que eu penso e sinto.
“ Não vás, não vás buscar os óculos,
disse o meu espelho. Não é preciso ver as mazelas em pormenor. Mesmo a olho nu,
com essa visão que de dia para dia te desfoca o mundo, consegues enxergar
aquelas estúpidas rugazinhas verticais por cima da boca, os espanejados
pés-de-galinha, as desgraciosas pequenas manchas que aqui e ali espreitam na
pele. As pálpebras pesadotas, vão-te escondendo os olhos que costumavam ser os
faróis da tua cara, e horror dos horrores, nascem-te pêlos no queixo porque te
faltam estrogénios ou lá o que é. Em compensação, as sobrancelhas vão ficando
ralas. Por que razão os pêlos não nascem onde fazem falta é uma maldade da
Natureza.
O pescoço despencou de vez. Não tarda
que pareças um peru bêbado, pronto para a ceia de Natal. Acabaram-se alcinhas,
saias curtas, saltos altos. Acabaram-se as noites longas, porque as olheiras
deixaram de ser interessantes para se tornarem deprimentes.
Não, não vás buscar os óculos. Não me
obrigues a mostrar-te que estás velha. Ah, sim? E depois? + Fui nova e bonita
durante tantos anos que agora me parece justo pagar este tributo à vida que me
favoreceu. Iria odiar ver a minha boca inchada de colagénio, as bochechas
paralisadas de botox, as orelhas arrepanhadas da cirurgia, a testa cada vez
mais alta e mais oca. A minha ideia é que Deus dá beleza às mulheres e aos homens
para se atraírem mutuamente e cumprirem o seu plano universal de reprodução da
espécie. Portanto, pele lisa e luminosa, lábios cheios, cintura fina, maminhas
empinadas, cabelos longos e macios. E nos homens, tudo o que tanto apreciamos e
nos faz inconscientemente escolhê-los para pais dos nossos filhos, assegurando
uma genética cinco estrelas. É assim com todos os animais: as fêmeas escolhem
os mais belos, os mais fortes, os mais capazes. Atraímo-nos e reproduzimo-nos.
A nossa função biológica é cumprida e termina aí. É justo que depois disso
queiramos ter boa aparência. Mas não temos de ser novas e sobretudo não
precisamos de parecer novas. Embirro com o conceito de parecer. Uma coisa é ou
não é. Prefiro ser. E tudo se torna mais fácil se, em vez de perder tempo a
olhar para ti, espelho, eu aprender a olhar para dentro de mim, para os
progressos da minha cultura e da minha alma. É possível que encontre a
curiosidade necessária para muitas e novas leituras e, quem sabe, uma paz, para
as quais não tive tempo enquanto seduzia, acasalava, amamentava, criava e
educava os filhos. Agora há uma luz diferente, um tempo diferente, um silêncio
diferente. Tudo isso é fecundo e constrói-nos a alma, tal como a vida nos
construiu o corpo. E destruiu, como é natural.
A alma, porém, é indestrutível.
Aprendemos a tolerância e a
relativizar as coisas. Já nada é muito importante e o sorriso torna-se mais
distendido e o olhar mais abrangente. Mobila a tua velhice, dizia a minha mãe,
se não queres, quando chegares lá, ser uma triste casa vazia. E fui mobilando.
Com bons autores, com bons pintores, com bons compositores, com pessoas
interessantes, amigos generosos, família adorável. Com a aprendizagem de mim
mesma, errando muito, reflectindo. A minha velhice é hoje uma casa cheia. Saudades,
claro, desgostos, com certeza. Erros e problemas, evidentemente. Mas também
cheia de paz, de aceitação, de permanente interesse, de alegria, de bom humor,
de luz.
As rugas? Deixa-as estar. É sinal de
que ri, de que chorei, de que pensei, de que vivi. Estou velha? E depois? A
única razão para ser velho é ter-se sido novo e isso fui e tu sabe-lo melhor do
que ninguém. Foi bom, mas não quero mais. Não troco um belo romance, uma sonata
de Beethoven, um quadro de Vermeer, por uma ruga a menos.
As minhas mãos têm veias azuis, os
meus romances têm asas, os meus netos têm sorrisos lindos.
Espelho meu, espelho meu, haverá
outra mais abençoada do que eu?”
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