sexta-feira, 28 de outubro de 2016

ROSA LOBATO DE FARIA


Hoje comemora-se o DIA MUNDIAL DA 3ª IDADE

Por isso escolhi um texto de Rosa Lobato Faria que guardo há anos, por gostar tanto e, de dizer tudo aquilo que eu penso e sinto.

 

“ Não vás, não vás buscar os óculos, disse o meu espelho. Não é preciso ver as mazelas em pormenor. Mesmo a olho nu, com essa visão que de dia para dia te desfoca o mundo, consegues enxergar aquelas estúpidas rugazinhas verticais por cima da boca, os espanejados pés-de-galinha, as desgraciosas pequenas manchas que aqui e ali espreitam na pele. As pálpebras pesadotas, vão-te escondendo os olhos que costumavam ser os faróis da tua cara, e horror dos horrores, nascem-te pêlos no queixo porque te faltam estrogénios ou lá o que é. Em compensação, as sobrancelhas vão ficando ralas. Por que razão os pêlos não nascem onde fazem falta é uma maldade da Natureza.

O pescoço despencou de vez. Não tarda que pareças um peru bêbado, pronto para a ceia de Natal. Acabaram-se alcinhas, saias curtas, saltos altos. Acabaram-se as noites longas, porque as olheiras deixaram de ser interessantes para se tornarem deprimentes.

Não, não vás buscar os óculos. Não me obrigues a mostrar-te que estás velha. Ah, sim? E depois? + Fui nova e bonita durante tantos anos que agora me parece justo pagar este tributo à vida que me favoreceu. Iria odiar ver a minha boca inchada de colagénio, as bochechas paralisadas de botox, as orelhas arrepanhadas da cirurgia, a testa cada vez mais alta e mais oca. A minha ideia é que Deus dá beleza às mulheres e aos homens para se atraírem mutuamente e cumprirem o seu plano universal de reprodução da espécie. Portanto, pele lisa e luminosa, lábios cheios, cintura fina, maminhas empinadas, cabelos longos e macios. E nos homens, tudo o que tanto apreciamos e nos faz inconscientemente escolhê-los para pais dos nossos filhos, assegurando uma genética cinco estrelas. É assim com todos os animais: as fêmeas escolhem os mais belos, os mais fortes, os mais capazes. Atraímo-nos e reproduzimo-nos. A nossa função biológica é cumprida e termina aí. É justo que depois disso queiramos ter boa aparência. Mas não temos de ser novas e sobretudo não precisamos de parecer novas. Embirro com o conceito de parecer. Uma coisa é ou não é. Prefiro ser. E tudo se torna mais fácil se, em vez de perder tempo a olhar para ti, espelho, eu aprender a olhar para dentro de mim, para os progressos da minha cultura e da minha alma. É possível que encontre a curiosidade necessária para muitas e novas leituras e, quem sabe, uma paz, para as quais não tive tempo enquanto seduzia, acasalava, amamentava, criava e educava os filhos. Agora há uma luz diferente, um tempo diferente, um silêncio diferente. Tudo isso é fecundo e constrói-nos a alma, tal como a vida nos construiu o corpo. E destruiu, como é natural.

A alma, porém, é indestrutível.

Aprendemos a tolerância e a relativizar as coisas. Já nada é muito importante e o sorriso torna-se mais distendido e o olhar mais abrangente. Mobila a tua velhice, dizia a minha mãe, se não queres, quando chegares lá, ser uma triste casa vazia. E fui mobilando. Com bons autores, com bons pintores, com bons compositores, com pessoas interessantes, amigos generosos, família adorável. Com a aprendizagem de mim mesma, errando muito, reflectindo. A minha velhice é hoje uma casa cheia. Saudades, claro, desgostos, com certeza. Erros e problemas, evidentemente. Mas também cheia de paz, de aceitação, de permanente interesse, de alegria, de bom humor, de luz.

As rugas? Deixa-as estar. É sinal de que ri, de que chorei, de que pensei, de que vivi. Estou velha? E depois? A única razão para ser velho é ter-se sido novo e isso fui e tu sabe-lo melhor do que ninguém. Foi bom, mas não quero mais. Não troco um belo romance, uma sonata de Beethoven, um quadro de Vermeer, por uma ruga a menos.

As minhas mãos têm veias azuis, os meus romances têm asas, os meus netos têm sorrisos lindos.

Espelho meu, espelho meu, haverá outra mais abençoada do que eu?”
 


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